Thomas Quick: O serial killer fabricado

em 13/12/2013


Olá amigos e amigas. O assunto da postagem abaixo foi uma grata dica do nosso amigo, leitor e colaborador Reinolds Silva, que em uma outra postagem nos sugeriu esse assunto via comentários. A história abaixo difere um pouco das demais postagens que costumam ir ao ar nas Sextas Feiras, dia em que o Noite Sinistra reserva um espaço nas suas páginas para a crueldade humana. Depois de receber a dica do amigo Reinolds, iniciei minha pesquisa, sendo que concentrei minhas maiores atenções em textos de três fontes principais, são elas: O Aprendiz Verde, Portal Terra e Murderpédia, conforme os amigos poderão ver nas referências ao final dessa postagem. Convido todos a conhecerem essa impressionante história que os amigo Reinolds nos indicou, o texto é longo, porém rico em importantes detalhes sobre essa trama que parece ter saído de algum livro ou filme dramático. 

Ao final da década de 70 tem início uma série de assassinatos que deixou de cabelos em pé a polícia da Suécia e da Noruega. Esses crimes variavam de desaparecimentos à assassinatos, alguns dos quais cometidos com certos requintes de crueldade. Crescia a impressão de que um serial killer pudesse estar por trás de tais crimes, embora alguns deles poderiam ser explicados apenas como fatalidades ou atos isolados, e a ineficiência da polícia em dar um fim a esse tormento aumentava a desoladora sensação de vulnerabilidade da pacífica sociedade escandinava. Até que no ano de 1992, como num passe de mágica, a solução do caso cai no colo da polícia, para o alívio dos cidadãos e para o deleite da imprensa ávida por informações bombásticas dignas de primeira página. O circo estava armado.

A aliviadora solução para os estranhos crimes e desaparecimentos, até então não resolvidos, veio de um hospício localizado na cidade de Säter - Suécia. No ano de 1992 um dos paciente do hospital psiquiátrico resolveu contar o que sabia. Os psiquiatras conseguiram extrair da mente desse paciente suas macabras memórias, por meio de terapias, e como veremos mais adiante, muitas drogas. Essas ditas memórias deixaram perplexos tanto os médicos, como também as autoridades locais, afinal esse homem havia assumido a autoria de uma série de crimes. Finalmente a polícia tinha sob posse o pior serial killer da história da Suécia e um dos piores dos últimos 30 anos, conhecido como "O fantasma da Escandinávia".

O fantasma agora tem nome e sobrenome

O monstro que parecia fora do alcance das autoridades policiais atendia pelo nome Thomas Quick, 42 anos. Assassinatos, estupros, estripamentos, esquartejamentos, canibalismo e etc. O serial killer começou a confessar os seus crimes, um a um, com riqueza de detalhes. Quick confessara o assassinato de 30 pessoas.

Logo Thomas Quick tornou-se uma sensação da mídia sueca. E ele adorava a fama. Em suas várias entrevistas para redes de TV’s, dava para notar em seu rosto a alegria de estar no centro das atenções. Durante toda a década de 1990 ele foi figurinha carimbada em reportagens de TV’s e jornais suecos, um verdadeiro pop star.


Mas em 2001, estranhamente, Thomas Quick sumiu. Quieto em seu quarto no hospital psiquiátrico, Thomas parecia distante, talvez, chegara a hora de um descanso. Chegou até à abandonar o nome Thomas Quick e voltou a usar o seu nome de batismo: Sture Bergwall. Thomas Quick, na verdade, era o alter ego de Sture Bergwall, uma espécie de segunda personalidade, sendo essa personalidade a responsável pelas confissões dos assassinatos.


A prisão de Sture Berwall

Bergwall foi preso pela primeira vez em 1990, após roubar um banco fantasiado de Papai Noel, supostamente para conseguir dinheiro para comprar drogas. Ele já havia sido anteriormente acusado de molestar meninos e de tentar esfaquear um amante.

Sture Berwall havia sido levado até a clinica psiquiátrica de Säter, pois ele estava tomado por pensamentos suicidas. Na clinica ele teria sido objeto de técnicas psiquiátricas experimentais, baseadas principalmente na terapia de recuperação de memória por sugestão. Na clínica Berwall teria tido acesso a grande quantidades de narcóticos controlados, principalmente benzodiazepínicos (tranquilizantes).

De volta as manchetes

Durante toda a década de 2000, Thomas Quick, ou Sture Berwall, pareceu isolado e esquecido, mas não por muito tempo. Em outubro de 2012, o sinistro serial killer voltou as manchetes não só da Suécia mas do mundo inteiro. E tudo por causa de um livro. Em outubro daquele anos, foi lançado um livro póstumo do documentarista sueco Hannes Rastam (morto em janeiro de 2012). O livro diz o impensável. Sture Bergwall não passa de um impostor. Na visão do documentarista o homem que durante mais de 1 década ficou conhecido mundialmente como um dos piores serial killers dos últimos tempos, na verdade, nunca matou ninguém.

Foto de Hannes Rastam
O caso gerou um dos maiores escândalos da história sueca e colocou a justiça do país no limbo. Mas a pergunta que não quer calar? Como um desequilibrado conseguiu enganar todo um país? Toda uma equipe de psiquiatras, psicólogos, médicos, detetives e autoridades?

Desvendando o caso

O texto abaixo é de ELIZABETH DAY DO "OBSERVER" e foi retirado do site da "Folha de São Paulo", sendo citado também no blog "O Aprendiz Verde". Nesse texto podemos ver toda a repercussão e o desfecho desse emblemático caso que colocou toda justiça sueca em cheque.

Elizabeth Day
Até relativamente pouco tempo atrás, Sture Bergwall era o mais notório assassino serial da Suécia. Ele havia confessado mais de 30 homicídios, e sido condenado por oito. Ele se chamava Thomas Quick. Assumindo esse sinistro alter ego, ele declarou durante uma sucessão de sessões de terapias em Säter ao longo dos anos que havia mutilado, estuprado e canibalizado os restos de suas vítimas, sendo a mais jovem delas uma menina de nove anos cujo corpo nunca foi achado.

O homicida sádico era uma sensação midiática, e seu rosto com óculos encarava o público das capas de jornal e das telas de TV. A imprensa o chamava de "o canibal". Thomas Quick se tornou o próprio Hannibal Lecter da Suécia. E o próprio assassino parecia adorar todo esse espetáculo.

Misteriosamente, e abruptamente, o então assassino confesso e estrela do circo de horrores para de cooperar no ano de 2001, recolhendo-se ao seu casulo e assumindo sua verdadeira identidade. Em 2008, Hannes Rastam, um dos mais respeitados documentaristas da Suécia, ficou intrigado. Ele visitou o ex-Thomas Quick, agora conhecido como Sture Bergwall, em Säter, revirou 50 mil páginas de documentos judiciais, anotações de terapeutas e interrogatórios policiais, e chegou à surpreendente conclusão de que não havia uma única prova técnica em qualquer das condenações de Bergwall.

Não havia traços de DNA, não havia armas dos crimes, não havia testemunhas oculares --nada além das suas confissões, muitas das quais apresentadas quando ele estava sob influência de fortes medicamentos com efeitos narcóticos. Confrontado com as descobertas de Rastam, Bergwall admitiu o impensável. Ele disse que inventara a história toda.

O livro que conta esse extraordinário caso e publicado postumamente na Suécia --Rastam morreu em janeiro, aos 56 anos, vítima de câncer no pâncreas e fígado, um dia depois de concluir o manuscrito. Em "Fallet Thomas Quick: Att Skapa en Seriemördare" ("O caso Thomas Quick: a fabricação de um assassino serial"), Rastam desvenda em minuciosos detalhes como o perturbado Quick foi capaz de obter junto a psiquiatras, policiais e advogados as principais informações relativas a cada caso, antes de transformar depoimentos desconexos e confusos em uma narrativa coesa, capaz de se sustentar num tribunal.


Jenny Küttim, que durante três anos trabalhou para Rastam pesquisando essa história, ficou horrorizada com o que eles encontraram. "A pior parte é que, pelo fato de as pessoas não fazerem seu trabalho, há muitos assassinos por aí que nunca foram apanhados nem enfrentaram a Justiça", diz ela.

Jenny Küttim
Num país conhecido pelos obstinados detetives ficcionais que aparecem nas obras de Henning Mankell e nos dramas escandinavos de TV, o livro deixou a opinião pública indignada e desencadeou um escândalo judicial. Bergwall já foi absolvido de cinco dos oito assassinatos. Dois processos restantes --o assassinato de Charles Zelmanovits, 15, e o duplo homicídio de um casal de campistas holandeses-- foram submetidos a uma revisão. O advogado de Bergwall, Thomas Olsson, espera que os veredictos sejam anulados, e então começará a lutar para libertar seu cliente do manicômio onde está encarcerado há mais de 20 anos. Segundo Olsson, o estranho caso do "serial killer" que nunca o foi "gera sérias dúvidas sobre todo o sistema judicial".

Foto de Charles Zelmanovits
Mas por que um homem confessaria crimes tão sádicos e violentos se fosse realmente inocente? O próprio Sture Bergwall tenta se explicar em uma entrevista. "Tinha a ver com pertencer a alguma coisa", diz ele, falando em sueco por intermédio de um intérprete. Sua voz é baixa, mas insistente, e seus pensamentos são expressos de forma inteligente. Sou a primeira jornalista britânica a conversar com Bergwall. Mas não foi difícil chegar até ele --embora tenha entrado em Säter antes que o uso da internet e dos celulares se disseminasse, ele atualmente tem sua própria conta no Twitter.


"Eu era uma pessoa muito solitária quando isso tudo começou", continua ele. "Estava num lugar com criminosos violentos, e notei que quanto pior, mais violento ou mais sério fosse um crime, mais interesse [o autor] recebia do pessoal psiquiátrico. Eu também queria pertencer a esse grupo, ser uma pessoa interessante aqui."


Bergwall sempre quis se misturar. Ele foi um adolescente que não se encaixava. Cresceu numa cidadezinha rural da Suécia, numa família de sete irmãos criados de acordo com rígidas crenças pentecostais. Ele se descreve como tendo sido uma criança "criativa e ambiciosa", interessada em teatro e literatura. Aos 14 anos, percebeu que era gay. Envergonhado com sua sexualidade, ele a escondeu de seus pais, profundamente religiosos. Começou a experimentar drogas --anfetamina era a sua favorita-- e, aos 19, foi acusado de molestar garotos adolescentes. Mais tarde, tentou apunhalar um ex-amante. Em 1990, fantasiado de Papai Noel, roubou um banco local para sustentar seu vício em drogas. O caixa o reconheceu, e ele foi encarcerado em Säter para receber tratamento psiquiátrico. Não era, àquela altura, um indivíduo estável, mas tampouco era um "serial killer" --não ainda, pelo menos.


Os irmãos Bergwall reproduzindo em 2012 a foto de infância
Quando jovem, Bergwall sempre quis acima de tudo ser levado a sério e tratado como uma pessoa inteligente. Durante um tempo, quis ser médico e leu sobre psicanálise. Em Säter, começou a perceber que poderia usar esse conhecimento para receber a atenção e a aceitação que tanto desejava. "O que você diria", perguntou ele certo dia ao seu psicanalista, em 1992, "se eu tivesse feito algo realmente ruim?".

"Isso criou uma reação, um interesse", afirmou Bergwall. "Eu disse: 'Talvez eu tenha assassinato alguém', e, uma vez dito isso, não havia volta."

O primeiro "assassinato" que Thomas Quick confessou foi o de Johan Asplund, pivô de um dos maiores mistérios criminais da história sueca. Johan era um menino de 11 anos que foi para a escola um dia, em novembro de 1980, e desapareceu. Seu corpo nunca foi encontrado. Durante uma série de sessões de terapia e, mais tarde, em depoimentos à polícia, Quick disse que apanhou Johan na frente da escola e o atraiu para o seu carro antes de levá-lo para uma mata e violentá-lo sexualmente. Quick alegou que entrou em pânico e estrangulou o menino, enterrando na sequência as partes desmembradas do corpo de Johan para que ninguém pudesse achá-las.

Johan Asplund
Mas, apesar das buscas feitas por peritos judiciais nos locais descritos por Quick, os restos não foram encontrados. Na verdade, os promotores levaram nove anos para montar uma acusação contra Quick, que foi finalmente condenado pelo assassinato de Johan em 2001. A essa altura, Quick já havia sido condenado por sete outros homicídios. Mas, de forma excepcional em se tratando de um "serial killer", não havia um "modus operandi" óbvio: Quick matou crianças e adultos, estuprou homens e mulheres, usou diversas armas e cometeu assassinatos em várias regiões da Suécia e da Noruega.

Zero de Acerto

Em 1996, ele confessou o assassinato de Therese Johannessen, 9, ocorrido oito anos antes, na Noruega. Quick inicialmente disse que a menina era loira e morava numa aldeia rural, mas na verdade ela tinha cabelos castanhos escuros e morava em um prédio de apartamentos numa área densamente urbanizada.

Therese Johannessen
"Ele teve zero de acerto", me disse mais tarde Thomas Olsson, advogado de Bergwall, quando voltávamos de Säter. "Ele descreveu uma situação totalmente diferente em todos os aspectos, mas, ao invés de aceitarem isso, foram em frente com 15 novos interrogatórios."

Olsson, contratado para representar Sture Bergwall depois que ele se retratou das confissões, tem fama de encarar casos difíceis. Esse fumante inveterado, com cabelo penteado para trás e rosto crispado, é precisamente o tipo de pessoa que se poderia imaginar interpretando em um filme o papel do advogado sueco ativista. Ele dirige rápido demais, num carro repleto de copos vazios de café. Embora não seja religioso, sua esposa insistiu para que pendurasse um rosário no espelho retrovisor, como lembrete para ir devagar.

Thomas Olsson
Será que Olsson acredita na periculosidade de Bergwall? Ele bufa. "Não! De jeito nenhum." Gosta dele? "Não gosto muito das pessoas, em geral", afirma ele, após uma pausa. "Mas, é claro, se você passa tanto tempo com um cliente, sempre vê a pessoa por trás das manchetes. Tudo começa com um menininho sob uma árvore de Natal, brincando com brinquedos, e termina de forma muito trágica. Em algum momento, todo mundo é vítima."

Após "confessar" o assassinato de Therese Johannessen, Quick foi levado à Noruega. As câmeras de TV acompanhavam cada movimento seu. Ele estava rapidamente se tornando um dos homens mais famosos da Escandinávia, e apreciava a atenção. Quando Quick declarou que havia atirado as partes do corpo de Therese em um lago próximo, as autoridades norueguesas passaram sete semanas drenando-o. Não acharam nada. Um "fragmento ósseo" de 0,5 milímetro foi localizado num bosque vizinho, mas descobriu-se posteriormente que se tratava de uma lasca de madeira calcinada. Apesar disso, Quick foi condenado.



Ainda mais curioso era o fato de que ele parecia ter álibis férreos para alguns dos seus crimes. Embora tenha confessado o assassinato de um adolescente em 1964, aos 14 anos, várias testemunhas disseram depois que se lembravam de vê-lo na comunhão da igreja com sua irmã gêmea, a cerca de 400 km do local do crime. Na verdade, havia até uma foto dele lá. Quando ele assumiu a autoria da morte de uma moça de 23 anos em 1985 na Noruega, ele disse ter feito sexo com a vítima, apesar da sua declarada preferência sexual por homens. A polícia havia encontrado traços de esperma no corpo da moça, mas uma análise de DNA posterior descartou a possibilidade de que o sêmen pertencesse a Thomas Quick. E mesmo assim, novamente, a Justiça o considerou culpado "além de qualquer dúvida razoável".

Sture Bergwall e sua irmã gêmea
Defensores dos veredictos observam que, em depoimentos, Quick havia citado informações reveladoras de cada um dos crimes, que só o assassino poderia conhecer. Ainda hoje, há quem defenda ardorosamente as investigações policiais, incluindo Göran Lambertz, juiz da Suprema Corte sueca que em 2006, no cargo de procurador-geral, revisou durante uma semana o processo de Quick e o considerou ilibado.

Göran Lambertz
"Não há DNA nem impressões digitais, e [as provas] não são tão fortes quanto poderiam ser", admitiu Lambertz quando nos encontramos. "O que há é que tudo o que ele disse na época meio que se encaixa. Ele deu um monte de fatos sobre dois assassinatos em particular [Johannessen e Zelmanovits] que se encaixam muito bem com o que realmente aconteceu e com o tipo de crianças que esses dois eram."

Mas, de acordo com Bergwall, muitas das informações já eram de domínio público; no começo da sua série de confissões, ele ainda recebia autorizações regulares para deixar o hospital.

"Eu ia à Biblioteca Real em Estocolmo no dia de licença e estudava velhos casos nas microfichas dos jornais", explica ele. Bergwall anotava os detalhes reveladores nas reportagens da época --o posicionamento do corpo, minúcias da paisagem, as vestimentas da vítima--, que ele mais tarde "revelaria" como Thomas Quick nas sessões de terapia. Seu terapeuta (que o encontrava para pelo menos três sessões semanais de 90 minutos cada) o elogiava por sua coragem em remexer fundo nas suas lembranças. A polícia ficava entusiasmada com o surgimento de um suspeito crível para um crime previamente sem solução. Em pelo menos duas ocasiões, Quick foi levado num jatinho para participar de reconstituições em locais de homicídios. Em todas as vezes, Quick se deleitava com a glória, como uma criança elogiada.


"Não precisei fazer muito para contar essas histórias", diz ele. "Geralmente, uma só matéria de jornal bastava. O resto das informações sempre vinha durante os interrogatórios, dos policiais, terapeutas e diferentes pessoas da equipe de investigação. Eu sabia que só precisava ouvir e prestar atenção."

Em todas as suas sessões de terapia e nas reconstituições policiais subsequentes Bergwall estava fortemente dopado por um coquetel de benzodiazepinas. Os prontuários médicos mostram que ele recebia comprimidos a cada duas horas --com frequência até 20 mg de diazepam, suficientes para apagar algumas pessoas. Uma dosagem elevada, dada a pacientes com dificuldades para controlar impulsos, pode levar a uma queda das inibições, explicando como Bergwall conseguiu inventar uma ladainha tão grotesca de canibalismo, estupro e assassinato. Ele se lembra de estar na época fascinado pelas descrições de "serial killers" da ficção --surpreendentemente, ele conseguiu pegar um exemplar de "O Psicopata Americano", de Bret Easton Ellis, na biblioteca do manicômio.

"As drogas eram muito importantes", diz Bergwall. "Eu tinha livre acesso a elas, e as usava para que me levassem a uma condição onde eu pudesse contar histórias e maquiná-las."

Que efeito as drogas tinham sobre ele?

"Muita coisa acontecia dentro de mim. Eu ficava chapado, eu ficava ligado, e aí eu tinha muitas fantasias. Minha imaginação corria solta. De certa forma, elas me davam muita criatividade. Era como um círculo vicioso. Quanto mais eu contava, mais atenção eu recebia dos terapeutas, da polícia e dos especialistas em memória, e isso significava que eu também recebia mais drogas."

Havia ao redor de Quick um grupo de pessoas descrito por meus interlocutores como algo equivalente a "um culto", "um circo itinerante" e "uma seita religiosa que não acolhia bem crenças discordantes". Um mesmo policial, terapeuta, promotor e advogado lidou com cada uma das suas confissões ao longo dos anos. Até o mesmo cão farejador, Zampo, era usado para farejar cada suposto local de homicídio.

"Durante o curso da investigação, Quick mencionou pelo menos 24 lugares na Suécia e na Noruega onde teria cometido assassinatos, manuseado corpos ou deixado partes de corpos", diz Leyla Belle Drake, que foi agente literária de Hannes Rastam. "Zampo apontou restos humanos 45 vezes nesses 24 locais. Nem um só traço de sangue ou parte de corpo chegou a ser encontrada. O cachorro é tão ruim quanto o resto deles."

Raiva quase tangível

A teoria que esse seleto grupo propunha era que o paciente havia reprimido lembranças extremamente traumáticas, que ressurgiam na forma de sequências oníricas que muitas vezes poderiam estar cheias de inconsistências. Só por meio de repetidas sessões de terapias com pessoas de confiança e da administração de calmantes a narrativa real poderia vir à tona.

Para Jenny Küttim, esse é um dos elementos mais escandalosos de todo o estranho caso.

"Ele era um paciente em um manicômio em Säter", diz Küttim, contendo uma raiva que é quase tangível. "Ele era o único que não tinha um emprego. Os demais ao seu redor eram quem deveria estar dizendo: 'Não, não acreditamos em você'. Nesse sentido, você não pode culpar Sture Bergwall, porque um monte de gente ao redor dele deveria ter dito que não. Ao mesmo tempo, a culpa também é dele, porque ele magoou muita gente ao contar essas histórias."

Quem mais se magoou foram os parentes e amigos das vítimas, que tiveram sua dor exposta em público e suas esperanças despertadas por um fantasista, para serem depois frustradas pela incompetência profissional. Björn Asplund é um deles: o pai do menino desaparecido aos 11 anos, que foi tema da primeira confissão de Quick. Asplund, 65, vive numa casa-barco chamada Viking, atracada a um ancoradouro permanente no lago Mälaren, no centro de Estocolmo. No interior, um bule de café ferve sobre o fogão, e o barco balança suavemente de lado a lado a cada exalação da maré. Da parede sobre a mesa de jantar à qual ele se senta pende uma foto em branco e preto de Johan: um menino sorridente, com um corte de cabelo tipo tigela.

Björn Asplund
"Ele era muito popular na escola, um garoto simplesmente ótimo", diz Asplund. "Seu sonho era se tornar agricultor." Asplund e sua ex-mulher, Anna-Clara (de quem ele se divorciou quando Johan tinha 3 anos), foram informados em 1993 que um paciente mental que eles não conheciam havia confessado o sequestro e assassinato do seu filho. Desde o começo, nenhum dos dois acreditou nisso.

"Não, por muitas razões", diz Asplund, que trabalha numa entidade de amparo à saúde mental. "Em quase todos os casos em que a criança é a vítima, o autor [do crime] é alguém que tem estreita relação com a criança."

Thomas Quick lhes era desconhecido. Na verdade, os Asplunds estavam convencidos de que sabiam quem matou o menino: um ex-namorado de Anna-Clara que queria se vingar pelo fim do relacionamento. Havia contra esse suspeito suficientes indícios circunstanciais para que os Asplunds iniciassem um processo privado contra ele. O ex-namorado foi condenado a dois anos de prisão por sequestro, mas libertado após recurso um ano depois. Björn Asplund, no entanto, continua convencido da culpa desse homem.

"Fiquei irritado quando Thomas Quick confessou, porque, a partir daí, percebi que todo o processo contra o ex-namorado estava encerrado", diz ele. O fato de Quick ter levado então sete anos para montar uma sequência coerente de fatos só confirmou as suspeitas do casal: "Para toda pessoa sóbria neste país, deve ter sido óbvio que esse cara não era confiável".

Durante a investigação, Asplund acredita que fosse óbvio que Quick estava obtendo informações da polícia. "Descobrimos que tudo que nós lhe dizíamos aparecia semanas depois nas suas sessões de terapia", diz ele.

Como exemplo, ele cita o fato de que Johan tinha uma marca de nascença na nádega direita, sobre a qual apenas os seus pais sabiam. Nos primeiros depoimentos, Quick afirmou apenas que Johan tinha algumas vagas marcas ou cicatrizes na barriga, possivelmente de uma cirurgia. A polícia perguntou aos Asplunds se Johan tinha alguma dessas cicatrizes. Durante um tempo, eles se recusaram a ser específicos, porque suspeitavam que a informação acabaria chegando a Quick.

"Aí ameaçaram levar Anna-Clara ao tribunal por proteger um assassino", relembra Asplund. "Então ela trouxe uma foto da marca de nascença."

Logo depois, Quick "lembrou" da marca na terapia. Aliás, para cada assassinato confessado, Quick era submetido a uma média de 10 a 15 interrogatórios policiais. Quando afirmou ter matado o mochileiro israelense Yenon Levi nos bosques de Dalarna, em 1988, Quick foi repetidamente questionado sobre a arma usada no crime. Nos depoimentos, ele mencionava um machado de camping, uma pá e um macaco de carro, entre outros itens, até finalmente topar com o objeto "certo": um taco de madeira. No tribunal, a indecisão de Quick foi ignorada: constou simplesmente que ele havia identificado corretamente a arma do homicídio.

Yenon Levi
Para as famílias das vítimas, a natureza prolongada de cada investigação era extremamente angustiante. Asplund, cuja vida já havia sido abalada uma vez pelo desaparecimento do filho, foi obrigado a novamente revirar lembranças dolorosas e depois escutar o terrível depoimento de Quick à Justiça. Quick disse ter comido os dedos de Johan; que cortou a cabeça do menino e a chutou como uma bola.

Asplund olha para longe, dá uma tragada em seu cigarro enrolado à mão. "Ficar sentado ali escutando aquilo, mesmo sabendo não ser verdade...", diz ele. "Foi uma situação horrível."

Com seu filho morto e o assassino ainda foragido, Asplund se sente traído? Ele responde com outra pergunta: "O que se pode fazer a respeito? Não acho que ficar irado vá me ajudar. Aconteça o que acontecer, é preciso focar no futuro e ir em frente. É preciso tomar a decisão de querer viver ou não. E, se a opção for viver, é preciso viver a vida plenamente. Não dá para gastá-la sentado no canto, pensando no que aconteceu."

De volta ao hospital de Säter, perguntei a Sture se ele pensava no impacto que suas confissões poderiam ter sobre as famílias das vítimas.

"Sim, eu pensava neles, mas não pensava. De certa forma, eu era cruel, mas esse também era um dos efeitos da benzo [benzodiazepina]. Significava que eu poderia ignorar qualquer compaixão."

Ele sabia que estava mentindo? "Essa é a parte mais difícil de explicar. Havia uma consciência de que eram mentiras. Ao mesmo tempo, eu estava vivendo nesse papel como Thomas Quick, e nesse papel eu podia esquecer essa consciência. Durante os anos de Thomas Quick, tentei me enforcar. Bati minha cabeça na parede até sangrar. À noite, eu acordava gritando 'não!' [como de fato consta no prontuário médico]. No meio da noite, havia uma consciência de que isso era tudo um faz-de-conta, e aí eu acordava, eu recebia uma dose de benzo e podia esquecer e deixar de lado."

O Silêncio

Em 2001, um novo diretor clínico em Säter revisou o prontuário médico de Quick. Ele ficou chocado ao descobrir a dosagem, e a oferta de drogas para Quick rapidamente minguou. Ao parar de tomá-las, ele também parou de confessar. No lugar disso, anunciou a jornalistas que não iria mais cooperar com a polícia, e saiu da vista do público. Manteve então seu silêncio durante sete anos, até que Hannes Rastam o localizou.

"Hannes era uma pessoa muito intensa, com a capacidade de realmente escutar os outros, e também de partilhar", diz Bergwall, pela primeira vez demonstrando algum sinal de emoção. "Eu me lembro da terceira vez que nos encontramos, Hannes havia visto os vídeos das reconstituições policiais, e disse: 'Posso ver que você estava chapado de drogas'. Foi a primeira vez que eu me lembro de pensar: 'Alguma coisa vai acontecer'. Eu senti: 'Sim! Alguma coisa vai mudar', e eu estava pronto para confessar."

"Foi libertador demais finalmente dizer a verdade e saber que eu não tinha nada a temer, já que era a verdade."

Nem todos acreditam que Sture Bergwall seja vítima de um dos mais grosseiros erros judiciais dos últimos tempos. Há quem observe que ele tem um histórico de mentir de forma convincente e manipular as pessoas. Estou ciente, por minhas conversas com ele, que Bergwall é hábil em devolver à pessoa aquilo que ela mais deseja escutar.

O juiz Göran Lambertz adverte contra "conclusões apressadas". Ele acredita que, em meio à pilha de falsos detalhes que Bergwall deu à polícia, pode haver alguns elementos de verdade. Essa posição o tornou profundamente impopular em certos setores da sociedade sueca, especialmente entre quem --como Thomas Olsson e Jenny Küttim-- faz campanha pela libertação de Bergwall.

"Muita gente fez carreira em cima do caso de Thomas Quick", diz Küttim. "Então hoje essa gente tem muito a perder."

Lambertz desconversa quando abordo isso com ele. "Ah, sim, sou um homem odiado", diz ele alegremente. "Acho que Sture Bergwall está nos fazendo de trouxas agora, é isso que eu acho. Não acho que ele seja inofensivo. Ele pode ser um idoso legal, sei lá, mas os psiquiatras por lá dizem que ele ainda é perigoso."

E se Bergwall for absolvido de todos esses homicídios pelos tribunais? Será que Lambertz continuará cético? Será que vai pedir desculpas por ter conduzido há seis anos uma revisão do processo de Quick em que não encontrou falha alguma na investigação policial?

"Pode ser correto [absolvê-lo], pode ser totalmente errado. Pode ser um meio-termo, não sei. Mas, se você me perguntar o que eu acho, acho que é mais errado do que certo."

Em Säter, nosso tempo está chegando ao fim. Bergwall se levanta e espera pacientemente que os dois funcionários o levem de volta à sua ala, no andar superior. Depois que ele sai, o que mais me impressiona a seu respeito é sua ausência de personalidade. Ele não deixa uma impressão forte. É perfeitamente possível, naturalmente, que depois de 21 anos de encarceramento e dependência em drogas ele não tenha mais muita noção de quem seja.

No lado de fora, de pé na tarde fria e cinzenta e olhando para cima, para o primeiro andar do edifício hospitalar, vejo Bergwall junto à janela. Ele sorri, dá um pequeno aceno, e então o "serial killer" que nunca o foi é levado para longe. Tudo o que resta é a luz refletida no vidro e as sombras onde ele esteve um momento atrás.


Inocentado de todas as acusações

No dia 31 de agosto de 2013, promotores suecos retiraram a última acusação de assassinato que recaía sobre ele. As autoridades suecas arquivaram o processo do desaparecimento de Charles Zelmanovits, desaparecido em 1976. Os restos mortais de Charles foram encontrados em 1993 e, imediatamente, Bergwall admitiu que o havia assassinado. Mesmo um exame forense tendo falhado em dizer que Charles fora assassinado, Bergwall foi condenado pelo crime.

Em 02 de agosto de 2013, ainda preso no hospital psiquiátrico Bergwall escreveu em seu blog:

Uma nova era começa. Tem sido anos de agonia e muitas viagens. Quarta-feira acabou tudo. Já me perguntaram se eu não estou intimidado com a realidade fora dos muros. Minha resposta é: nada pode ser mais doloroso do que os sete anos em absoluto silêncio e nada pode ser mais difícil do que os quase cinco anos de retirada dos processos. Uma nova era começa agora, um tempo para a escrita e caminhadas pela floresta, conversas na mesa de piquenique com a família e amigos e luta por um dos grupos mais vulneráveis da sociedade: os presos de clínicas psiquiátricas. Eu ainda sou um prisioneiro, mas eu sou de muitas maneiras livre, mais livre do que eu jamais estive.

Fontes: O Aprendiz Verde, Folha de São Paulo, Portal Terra, Murderpédia e Obscura

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3 comentários:

  1. Muito boa essa matéria!! Já tinha visto alguma coisa sobre esse caso antes, mas não com tantos detalhes. É impressionante o que um lunático sob efeito de narcóticos e vai lá saber mais que coisa, é capaz de fazer. Esses malucos inventam coisas que ta loco!! Muito realistas. Mas a mentira sempre acaba, cedo ou tarde.

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    1. O texto ficou um tanto longo demais...mas não consegui resumir mais as coisas...

      Concordo com a tua opinião, em relação a esse cara que falou mais do que devia, mas devemos lembrar que os médicos que aplicaram doses tão altas de medicamentos e que mesmo assim levaram a serio o depoimento do senhor "Quick", também estavam muito errados...isso sem contar na postura da polícia...

      Acho que nesse caso pesou a questão de conseguir solucionar rapidamente o caso e levar a glória pelo feito...

      Abraço Bruna...

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  2. Insano a atitude do cara da polícia e dos médicos e assim deixaram de ir atrás dos verdadeiros assassinos ou assassino deixando ele (s) a solta pra continuar matando e as famílias sem uma solução e um desfecho

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